O feminismo e a luta de classes

Frequentemente vejo tecerem comentários e críticas ácidas ao feminismo em oposição à luta de classes. Como se um excluísse o outro: a luta de classes deve estar acima e, com isso, vinha um “segure o seu feminismo de umbigo!” ou “esse feminismo não me serve”! De homens de esquerda era comum ouvir; de mulheres não tanto, mas ainda via. E me preocupava.

Esse pensamento me deixa um pouco aturdida porque me parece tão raso quanto os “vai pra Cuba”, além de parecer uma maneira rebuscada de quem conhece os argumentos para desqualificar o movimento.

Já dizia a frase: nada mais parecido com um machista de direita que um machista de esquerda! Como assim feminismo em oposição à luta de classes?!

É claro que existem segmentos burgueses dentro do feminismo. A mulher burguesa, por mais privilégios que tenha, não está livre das opressões de gênero. O feminismo não é uma exclusividade da mulher proletária.

A cooptação de movimentos pela burguesia é inevitável, o que não exclui sua existência na classe operária nem diminui sua importância. Aliás, é até engraçado falar de cooptação se pensarmos que feminismo, socialismo, comunismo, entre outros, são teorias surgidas de berços burgueses porque, voilà, sempre foram eles os agraciados pela dádiva da educação, da informação, da formação intelectual – e não as classes subalternas.

É ingenuidade e até irracional imaginar que todo movimento de luta dar-se-á apenas na classe operária por ser essa a mais oprimida – lembremos, de passagem, que é justamente a burguesia, a classe média, que têm o privilégio do acesso à informação de qualidade para formar opinião. Não a classe operária. Esta aprende, via de regra, da materialidade, da vivência, da experiência e não de leituras acadêmicas e produções bibliográficas. Não é à toa que tão facilmente encontramos opiniões reacionárias entre os mais oprimidos. Ora, o que esperavam, afinal?

Entretanto, o fato de existirem segmentos cooptados pela burguesia – que obviamente não representam os anseios reais dos mais oprimidos na classe operária – em quase todo movimento de luta, não quer dizer que não exista o oposto: um sincero movimento de luta da classe oprimida, dos que mais precisam dessa informação, do empoderamento, da emancipação.

Quando a mulher diz “não sou feminista porque o feminismo é burguês” está ignorando uma trajetória histórica de luta que não é exclusiva da burguesia, mas que (independente da sua boa vontade de aceitação ou não) nasceu nela. Está ignorando conquistas que também refletiram na classe operária. Mas muito além disso: está enfraquecendo a sua própria militância dentro da luta de classes.

Não é possível fazer a luta de classes anti-capitalista sem derrubar com essa política econômica o sistema patriarcal. De nada vale um sistema político e econômico diferente se a estrutura patriarcal se mantiver.

Não, não são diretamente ligados. A queda de um não é a queda do outro. Mas são intrinsecamente relacionados, é profundamente necessário que se execute em conjunto, pois a emancipação da mulher é sim um dos pilares da luta de classes. Sim, senhores!

Qual a representação da mulher dentro do proletariado? Qual a porcentagem de mulheres dentro da sociedade? Metade deste mundo, metade deste sistema, metade desta horda de oprimidos que precisam estar na luta de classes pela derrubada do sistema econômico são mulheres.

Sem mulheres não há revolução.Sem a emancipação da mulher, sem a derrubada do patriarcado, não há derrubada do capitalismo.

Lenin era assertivo sobre isso. Selecionando alguns trechos importantes, vejamos:

Em Petrogrado, em Moscou, nas cidades e nos centros industriais afastados, o comportamento das mulheres proletárias durante a revolução foi soberbo. Sem elas, muito provavelmente não teríamos vencido. (…) A primeira ditadura do proletariado abre verdadeiramente o caminho para a completa igualdade social da mulher. Elimina mais preconceitos que a montanha de escritos sobre, a igualdade feminina. E apesar de tudo isso, não possuímos ainda um movimento feminino comunista internacional. Mas devemos chegar a formá-lo, a todo custo. Devemos proceder imediatamente à sua organização. Sem esse movimento, o trabalho de nossa Internacional e das suas seções será incompleto e assim permanecerá. (…) Somente se milhões de mulheres estiverem conosco poderemos exercer a ditadura do proletariado, poderemos construir segunda diretrizes comunistas. Devemos encontrar a maneira de uni-las, devemos estudar para encontrar essa maneira. Por isso é justo formular reivindicações em favor das mulheres: já não se trata de um programa mínimo, de um programa de reformas, no sentido dos social-democratas da II Internacional. Não é um reconhecimento da eternidade ou pelo menos da longa duração do poder da burguesia e da sua forma estatal. Não é uma tentativa de satisfazer as mulheres com reformas e desviá-las do caminho da luta revolucionária. Não se trata disso nem de outros truques reformistas. Nossas exigências se apoiam nas conclusões práticas que tiramos das necessidades prementes, da vergonhosa humilhação da mulher e dos privilégios do homem. (fonte: O Socialismo e a Emancipação da Mulher).

feminismo URSS
“Mulheres operárias, tomem seus rifles” fonte: guity-novin.blogspot.com

Pensemos, então, a questão do feminismo e os direitos da mulher na experiência soviética. Inicialmente, a URSS representou o maior avanço na emancipação feminina: a começar que as mulheres também engrossaram as fileiras da revolução, não apenas como enfermeiras, mas também como combatentes; depois, o primeiro país do mundo a garantir o aborto legal; a instituição do casamento civil em substituição ao religioso e o direito ao divórcio a pedido de qualquer um dos cônjuges; direito à educação, socialização do trabalho doméstico, criação de creches, direitos iguais, isonomia salarial, trabalho – antes função exclusivamente masculina, e isso inclui postos políticos. Enfim, a revolução também foi uma revolução de mulheres. Mas isso num primeiro momento.

A professora e historiadora Wendy Goldman conta que a facilidade para divorciar levou muitos homens soviéticos a terem relacionamentos breves com mulheres, engravidá-las e abandoná-las. Nisso não há nada de revolucionário, é o patriarcado ainda presente. Consequentemente, um retrocesso se deu quando Stalin, em ’36, decretou um conjunto de leis conservadoras para remediar a situação. Perdeu-se o direito ao aborto, dificultou-se o divórcio, fortaleceram a instituição familiar das noções conservadoras.

Compreendo a crítica de que o movimento se perde, por vezes, nas questões sexuais sim. Compreendo e concordo com Lenin e tantos outros escritores da linha que essa pauta levada ao patamar mais alto não é nada marxista, não é materialista. Sim, é uma preocupação pequeno burguesa (na medidade que mulheres periféricas não se podem dar o luxo de pensar sobre isso com tantas urgências impostas pela situação socioeconômica pesando em suas costas).

Entretanto não posso concordar que apenas se ataquem essas pautas – que devem existir; mesmo que secundariamente, mas devem – sem que se faça um trabalho de base. Ou seja, pessoas atacam sem estar, por sua vez, fazendo qualquer trabalho de base com a própria classe proletária, sem estar militando pela luta de classes. Não passa, pois, de pura demagogia.

Como mulher, reconheço que cada aspecto compreendido das opressões que me são impostas – dos mais supérfluos aos mais complexos – me abrem a mente e conectam às mais diversas questões. São importantes pra mim para reconhecer minhas opressões de gênero e identificar de que forma elas dialogam com as consequências do sistema político e econômico, das construções burguesas e afins.

Então, sim, na minha militância, são fundamentais. Não são minha pauta principal, mas são essenciais pra minha conscientização, minhas formulações, minha emancipação e construção identitária sobre minha autonomia, meu espaço na sociedade e nas concepções de mundo, principalmente num sistema que consegue reduzir tudo à noção de propriedade e mercadoria.

Vejo como dois contextos: micro e macro. O micro é a esfera íntima, mais próxima, pessoal, particular; o macro é o social, interligado a outros sistemas externos.

Uma mulher que não consegue refletir sua própria autonomia, sua consciência, sua liberdade pessoal, seu direito individual, seu corpo, pensar a si mesma na sua vida e na relação com o restante; como se espera que essa mulher, alienada de si própria, possa ter forças e consciência para lutar pelas opressões de classe, do sistema econômico, do que está fora da sua esfera íntima?

Por fim, invés de desqualificar o movimento, abandonar e atacar como um empecilho à luta de classes, perdem as mulheres e os homens que o marginalizam, que segregam, excluem e abandonam. Perdem porque deveriam, em primeira instância, fazer um trabalho de classe dentro desse movimento. Deveriam disputá-lo, cooptá-lo, politizá-lo com o recorte de classe dentro do materialismo ao invés de simplesmente deixar que se perca, ignorando anos de construção, nos ideais burgueses que muito se servem dessa manobra.

Feminista sim. Pelas minhas liberdades individuais sim. Mas, principalmente, por um feminismo classista e internacional.

 


Texto meu, originalmente publicado no blog Mundo Desalienado.

Deixe um comentário